Poucas palavras do evangelho sofreram, ao longo dos séculos, tão grande adulteração e ludibrio tamanho como estes. Escritores e oradores de fama mundial, e até ministros do Evangelho, aderem à blasfêmia de que o Nazareno tenha proclamado bem- aventurados e cidadãos do reino dos céus os “pobres de espírito”, isto é, os apoucados de inteligência, os idiotas, os mentalmente medíocres, os imbecis. Se assim fosse, o próprio Nazareno, riquíssimo de espírito, não faria parte dos bem-aventurados e possuidores do reino dos céus.
Não se sabe o que mais estranhar nessa interpretação, que se tornou proverbial, se a hilariante ignorância dos seus autores, se a revoltante arrogância dos profanadores de uma das mais sublimes mensagens do Cristo.
Nem no texto grego do primeiro século, nem na tradução latina da Vulgata se encontra o tópico “pobres de espírito”, mas sim pobres pelo espírito, ou seja, “pobres segundo o espírito (em grego: tô pneumati, no terceiro caso, dativo, não no genitivo)”. Na tradução “de espírito” entende-se o genitivo, como se disséssemos: fulano é pobre de saúde, de inteligência. De maneira que nem a gramática nem o espírito geral do Nazareno permitem a tradução “pobres de espírito”, que, no entanto, se tornou abuso quase universal.
Jesus proclama bem-aventurados, cidadãos do reino dos céus, agora e aqui mesmo, todos aqueles que são pobres, ou desapegados, dos bens terrenos, não pela força compulsória das circunstâncias externas e fortuitas, mas sim pela livre e espontânea escolha espiritual; os que, podendo possuir bens materiais, resolveram livremente despossuir-se deles, por amor aos bens espirituais, fieis ao espírito do Cristo: “Não acumuleis para vós bens na terra- mas acumulai bens nos céus”.
Essa libertação da escravidão material pela espiritual supõe uma grande experiência e iluminação interna. Ninguém abandona algo que ele considera valioso sem que encontre algo mais valioso. Quem não encontrou o “tesouro oculto e a pérola preciosa” do reino dos céus não pode abandonar os pseudotesouros e as pérolas falsas dos bens da terra. É da íntima psicologia humana que cada um retenha aquilo que ele julga mais valioso. O verdadeiro abandono, porém, não consiste numa fuga ou deserção externa, mas sim numa libertação interna. Pode o milionário possuir externamente os seus milhões, e estar internamente liberto deles- e pode também o mendigo não possuir bens materiais e, no entanto, viver escravizado pelo desejo de possuí-los, e, neste caso, é ele escravo daquilo que possui. Este possui sem ser possuído- aquele é possuído pelo que não possui.
O que decide não é possuir ou possuir externamente- o principal é saber possuir ou não possuir. Ser rico ou ser pobre são coisas que acontecem, fora- mas a arte de saber ser rico ou ser pobre é algo que nós produzimos, de dentro. O que nos faz bons ou maus não é aquilo que nos acontece, mas sim o que nós mesmos fazemos e somos. A verdadeira liberdade, ou seu contrário, consiste, numa atitude do sujeito, e não em simples fatos dos objetos. O que de fora entra no homem não torna o homem impuro- mas o que de dentro sai do homem e nasce em seu coração, isto sim torna o homem impuro- ou também puro, conforme a índole desse elemento interno.