Aparelhamento político abriu Cemig a contratos suspeitos

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Até escolha de presidente passou por dirigente do Partido Novo, com aval do jurídico e a complacência do compliance.

O diretor-adjunto de Compliance admitiu que presidente da Cemig queria sala para instalar secretário de Estado no prédio da Cemig – Foto: Guilherme Dardanhan

A contratação do diretor-presidente Reynaldo Passanezi Filho, em janeiro de 2020, foi o ponto de partida do aparelhamento político que parece ter aberto as portas da Cemig para uma série de contratações sem licitação e outras decisões estratégicas temerárias para o futuro da empresa. E tudo isso com o aval da Diretoria de Regulação e Jurídica, que passou por cima de mecanismos internos de controle, e a complacência da Diretoria-Adjunta de Compliance, Riscos Corporativos e Controles Internos, que deveria zelar por seu cumprimento.

Este foi o saldo do interrogatório de mais dois altos executivos da companhia energética pelos deputados que compõem a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Cemig, da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG). A reunião realizada na tarde desta segunda-feira (20/9/21) ouviu o diretor-adjunto de Compliance, Luiz Fernando de Medeiros Moreira, e o diretor jurídico Eduardo Soares, ambos na condição de testemunhas.

Ao longo do depoimento do primeiro, o presidente da CPI, deputado Cássio Soares (PSD), lembrou que as circunstâncias da contratação do atual diretor-presidente da Cemig, com a participação direta de um integrante da Executiva Estadual do Partido Novo, o mesmo do governador Romeu Zema, atestam que empresa passou a trabalhar segundo interesses ideológicos e não mais em prol do seu maior acionista, a população mineira.

“Estamos diante de um caso flagrante de uma empresa que terceirizou o processo do recrutamento do seu presidente a um dirigente partidário. O governador é filiado a um partido político, isso é necessário para ser eleito, mas isso para por aí”, afirmou Cássio Soares. O dirigente partidário nesse caso seria o empresário Evandro Veiga Negrão de Lima Júnior, que não tem cargo na Cemig nem no Executivo, mas é secretário de Assuntos Institucionais e Legais do diretório do Partido Novo no Estado.

O nome do dirigente do Novo foi lembrado durante o interrogatório do diretor-adjunto de Compliance, Luiz Fernando, pelo relator da CPI, deputado Sávio Souza Cruz (MDB), e pela deputada Beatriz Cerqueira (PT). O relator inclusive alertou o depoente para a prática do crime de usurpação de função pública, previsto no artigo 328 do Código Penal, agravado, segundo ele, pelo fato de que a Cemig, apesar de ser uma sociedade de economia mista, ter capital aberto e estar sujeita às regras de mercado da Comissão de Valores Imobiliários (CVM).

“A empresa contratada pela Cemig dirigiu proposta a uma pessoa que não tinha vínculo com a Cemig e sim um vínculo partidário com o governador do Estado. Com isso, teve acesso a informações privilegiadas, um insider em uma empresa de capital aberto. Isso não é usual, é anômalo”, criticou Sávio Souza Cruz. A empresa citada é a Exec, companhia de headhunter responsável pelo processo de seleção que culminou na escolha do atual diretor presidente da companhia mineira de energia, recebendo, para isso, em um contrato sem licitação, R$ 170 mil.

Convalidação – Em seu depoimento à CPI da Cemig no mês passado, o gerente de Provimento e Desenvolvimento de Pessoal da Cemig, Rômulo Provetti, admitiu que recebeu a proposta de contratação do diretor-presidente de Evandro, a quem não conhece. A proposta foi descartada. Contudo, a convalidação do contrato da Exec seguiu e foi aprovada em fevereiro de 2020, mais de 30 dias depois de o diretor-presidente Reynaldo Passanezi ter sido nomeado para o cargo. Ou seja, ele “contratou” a empresa que o selecionou.

Prevista na legislação, a convalidação é a regularização de contratações depois dos serviços já terem sido executados, mas que deveria ser utilizada somente em situações emergenciais, o que não tem acontecido na Cemig, em uma escala que já ultrapassou a casa do bilhão de reais.

Compliance – O vice-presidente da CPI da Cemig, deputado Professor Cleiton (PSB), questionou o diretor-adjunto de Compliance sobre qual a participação desta área nas convalidações de contratos. “A Cemig virou um vale-tudo e o setor de compliance concordou com isso? Para o que ele existe então, é pra inglês ver?”, indagou.

No âmbito institucional e empresarial, compliance (do verbo cumprir, na tradução do inglês) é o setor que zela pelo cumprimento de normas legais e regulamentares, as políticas e as diretrizes estabelecidas para o negócio e para as atividades da instituição ou empresa, bem como tem como missão evitar, detectar e tratar quaisquer desvios ou inconformidades que possam ocorrer na corporação.

Presidente da Cemig queria dar uma sala para secretário de Estado

Ao responder uma pergunta do Professor Cleiton, o diretor-adjunto de Compliance admitiu ainda que foi consultado pelo presidente da empresa se o então secretário de Estado de Desenvolvimento Econômico, Cássio Azevedo, poderia ter uma sala no 18º andar do edifício-sede da Cemig.

Cássio Azevedo, que morreu de câncer no ano passado, é fundador da AeC, outra empresa com contrato suspeito celebrado com a Cemig. “Fizemos uma análise e dissemos que isso não poderia acontecer por ferir a autonomia da empresa. Pelo que eu sei, isso nunca foi feito”, disse Luiz Fernando. 

Em suas demais respostas, o diretor-adjunto afirmou que sua área fazia apenas a revisão rotineira posterior dos contratos e que o principal canal de denúncias na Cemig é a sua Comissão de Ética. Ainda segundo ele, um Comitê de Auditoria ligado ao Conselho de Administração também deu aval a alguns dos contratos após aprovação da Diretoria Executiva.

“Cada área faz o pedido de contratação e a primeira análise. O compliance não tem competência para esse tipo de avaliação, ainda mais do ponto de vista jurídico. Mas tenho certeza de que as análises jurídicas estão respaldadas na lei”, apontou.

Indicações – O deputado Roberto Andrade (Avante) minimizou a influência política do governador no comando da Cemig. “Todo governador nos últimos anos fez as suas indicações políticas”, lembrou. Já o deputado Zé Guilherme (PP) lembrou os avanços dos mecanismos de gestão da empresa e seus bons resultados recentes.

Deputados questionam conflito de interesses em contratações diretas

A CPI também interrogou nesta segunda (20) o diretor jurídico da empresa, Eduardo Soares, personagem central no suposto esquema de contratações sem licitação na Cemig. Parlamentares questionaram o gestor sobre temas como a sua relação direta com um dos escritórios de advocacia contratados sem concorrência pela companhia, a dispensa de pareceres jurídicos para vultuosas contratações e a substituição de servidores de carreira por profissionais do mercado em cargos estratégicos.

A deputada Beatriz Cerqueira perguntou ao depoente se ele não enxergava uma situação de conflito de interesses na contratação do escritório Lefosse, do qual o atual diretor jurídico foi sócio até quatro dias antes de ingressar na estatal de energia. Todo o processo de seleção do escritório e validação dos seus serviços foi conduzido por Eduardo Soares.

Ele confirmou ter indicado a banca advocatícia para a Cemig, em uma situação “grave e emergencial”, mas argumentou não ter autonomia para bater o martelo para sua contratação, sendo necessária deliberação por parte da diretoria executiva.

Segundo ele, o escritório foi acionado às pressas para contornar uma situação na Renova Energia, empresa na qual a Cemig possui participação acionária, que poderia culminar em um prejuízo de R$ 1,4 bilhão para a estatal. “Nessas condições, sem tempo para a seleção de escritórios, a Cemig resolveu aceitar a proposta e dar início aos trabalhos”, disse.

Na mesma linha, Eduardo Soares defendeu outras contratações sem licitação questionadas pelos deputados, como a da headhunter Exec e da Kroll, especializada em investigações corporativas, regularizadas posteriormente pelo citado processo de convalidação. Ele ressaltou que não foram adotados procedimentos informais, e sim um expediente necessário em uma empresa do porte da Cemig para solucionar situações que exigem muita agilidade ou sigilo.

As explicações do gestor não convenceram, contudo, os parlamentares. “As convalidações são um comportamento da atual gestão que chama muita atenção”, afirmou Beatriz Cerqueira. “É tudo bastante estranho. Muitos processos de convalidação, que significa a correção de erros anteriores. Não é um processo normal”, apontou Cássio Soares.

Em outro possível conflito de interesses, o deputado Professor Cleiton lembrou que o Lefosse é credor da Renova Energia.

Pareceres jurídicos – Eduardo Soares também foi questionado sobre a dispensa de pareceres jurídicos prévios em processos de contratações diretas, por meio de propostas de deliberação (PDs) subscritas pelo diretor jurídico.

De acordo com o depoente, além dessas PDs suprirem os pareceres, uma vez que ele é advogado e responsável pelas decisões jurídicas da empresa, a diretoria executiva pode relevar a exigência de pareceres e modificar o processo de contratação em casos específicos, tendo em vista que ela mesmo instituiu as normas internas.

Nesse ponto, Beatriz Cerqueira lembrou que a gerente de Compras de Materiais e Serviços da Cemig, Ivna Araújo, relatou à CPI que a dispensa de pareceres jurídicos em contratações sem licitação foi questionada internamente e deu origem a um plano de ação para revisão do Regimento Interno.

Cargos de gestão – Professor Cleiton também perguntou qual o objetivo da nova orientação da companhia para a contratação de funcionários não concursados para cargos estratégicos. Em outubro de 2020, o Conselho de Administração da Cemig alterou norma interna para permitir a ocupação de até 40% das posições gerenciais por profissionais do mercado. 

Eduardo Soares ponderou que essa mescla trará mais diversidade de ideias e experiencias para a empresa, buscando adaptá-la às mudanças em curso no mercado de energia, como no setor de distribuição, para o qual está prevista a destinação de R$ 22,5 bilhões em cinco anos, segundo o depoente.

Para Professor Cleiton, na verdade trata-se de uma estratégia para substituir pessoas com uma relação identitária com a Cemig por profissionais sem o mesmo vínculo. Ao abordar os investimentos prometidos na distribuição de energia, ele questionou se era o fim do alardeado processo de privatização da empresa, mas ficou sem uma resposta contundente do diretor jurídico, que afirmou não estar ao alcance do comando da estatal este tipo de decisão.

Investigações – O deputado Zé Guilherme solicitou informações sobre as providências adotadas pela Cemig após denúncias de corrupção na área de suprimentos e sobre as investigações conduzidas pela Kroll.

O executivo informou que a Cemig decidiu fazer uma investigação corporativa independente sobre as denúncias, após receber ofícios do Ministério Público sobre os fatos. Isso porque, desde 2019, a empresa possui um acordo com autoridades dos Estados Unidos de cooperação nesse tipo de situação, o que inclusive ensejou o afastamento de seis profissionais denunciados, para que auditorias externas de demonstrações financeiras não ficassem comprometidas.

Para coletar e preservar os dados a serem investigados, relatou o depoente, a Kroll foi contratada e teve acesso a celulares e computadores corporativos.

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