De onde vem a água das chuvas de inverno da Argentina? Da Amazônia. É por isso que a ciência chama esse fenômeno de “rios voadores” – um fluxo de vapor de água exportado pela maior floresta tropical do mundo. A floresta amazônica hidrata toda a América do Sul e está atrelada a 70% do PIB do continente. O desmatamento ameaça esse grande ciclo d’água, se tornando um problema social, econômico, político e diplomático global. Não se trata de uma questão de “soberania nacional”, como diz o presidente brasileiro Jair Bolsonaro; trata-se de nossas vidas.
Como super-heróis, os rios voadores viajam pelo ar determinados, mas em forma de grandes massas de água. O fenômeno ocorre graças a uma combinação de fatores: a imensidão da riqueza biológica da floresta, a luz do sol, os ventos e a poderosa parede de 6.000 metros chamada Cordilheira dos Andes.
Os rios voadores permitem que uma grande parte da Argentina, Paraguai, Uruguai, além do sul do Brasil não tenham uma estação seca na mesma intensidade do Brasil central. Ou que os Andes possam alimentar suas geleiras, que mais tarde se tornarão verdadeiros rios.
“A floresta cria a chuva, a chuva cria a floresta, a floresta cria a chuva. Uma evolução ecológica de milhões de anos”, diz Carlos Nobre, cientista da Universidade de São Paulo, famoso mundialmente por seus estudos sobre a ligação entre os biomas e a atmosfera. Em meio aos latidos de seus quatro cães ao fundo, ele explica que a floresta é muito assertiva na reciclagem de água porque as raízes são muito eficazes no transporte de água do solo para as folhas. “Quando se muda esta floresta para pastagem de gado, os pastos não são eficazes para fazer a água transpirar do solo.”
Mas para a formação de nuvens, é essencial não apenas que as árvores transpirem umidade, mas também que as flores e folhas produzam seus perfumes. Esses gases serão transformados em uma partícula sólida quando entrarem em contato com a luz solar. Em torno desse núcleo sólido, será formada uma pequena gota d’água, que mais tarde se transformará em chuva. Pesquisadores chamam isso de “pó de fada”.”Estas partículas microscópicas muito pequenas são o núcleo de condensação das gotículas de água das nuvens. Quando a floresta desaparece, essa formação diminui muito”, explica Carlos.
A Amazônia e o mundo
O fenômeno dos rios voadores mostra como é complexo e intrincado o planeta interconectado em que vivemos. Em 2020, o desmatamento na Amazônia aumentou 55% em relação a 2019, ano em que foram registrados 981.282 alertas de incêndio. A voracidade desses incêndios, que escureceram os céus de São Paulo em plena luz do dia, mobilizou todo o planeta com o hashtag #PrayforAmazonia (rezar pela Amazônia), e também provocou algumas novas reações internacionais.
O presidente da França, Emmanuel Macron, ameaçou romper o acordo da União Européia com o Mercosul, um aviso que hoje está ainda mais latente. Recentemente, um conglomerado de 29 instituições financeiras, que administram de 3,7 trilhões de dólares, enviou a Jair Bolsonaro uma carta com um aviso para não ir adiante com a destruição da floresta. Redes de supermercados na Grã-Bretanha e na França ameaçam boicotar os produtos do país se uma lei legalizando a grilagem de terras públicas for aprovada (o Congresso brasileiro finalmente recuou sob a pressão), enquanto investidores falam em se desfazer maciçamente de títulos da dívida do Brasil.
Em meio aos incêndios do ano passado, o irmão de Nobre, Antonio, que é pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), disse ao jornal argentino El País: “Toda a floresta amazônica coloca 20 bilhões de toneladas de água na atmosfera todos os dias. O rio Amazonas, o maior do mundo, coloca 17 bilhões de toneladas no Oceano Atlântico no mesmo período.” Os números são esmagadores.
Nobre diz que nem mesmo a floresta tropical de Misiones, na Argentina, seria o que é sem a água que vem da Amazônia. Que em vez de ser uma floresta extraordinária com todos os seus diversos insetos, de tucanos e coatis, onças e borboletas, seria mais como o Cerrado brasileiro – outro bioma que foi impiedosamente assaltado pelo agronegócio.
Juan Antonio Rivera, pesquisador da CONICET, estima que as chuvas poderiam cair de 20% a 25% em um cenário de desmatamento total, o que “poderia levar a um futuro aumento na freqüência de secas na região, com impacto no setor agrícola”.
“Não significa que a bacia do Rio da Prata será transformada em um deserto”, explica José Marengo, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais do Brasil. Segundo ele, isso significa que as chuvas serão reduzidas. Vai chover menos, mas as chuvas podem ser mais intensas. Quando chove menos, há problemas de armazenamento de água para a abastecimento e reservatórios hidroelétricos, e quando as chuvas são concentradas, há mais inundações. “Os impactos não seriam apenas na América do Sul. Estudos mostram que isso poderia afetar o centro-oeste dos Estados Unidos e outras regiões tão distantes quanto a Austrália. Ele se torna um problema global, não apenas regional.
Sem volta
Carlos Nobre estuda o possível “ponto de virada” da grande ecorregião amazônica. Esse ponto de inflexão é o momento que, uma vez cruzado, impede que as coisas voltem a ser como eram antes. É por isso que o cientista insiste que se cruzarmos a fronteira de 20 ou 25% de destruição – hoje estamos a 16-17% – todo o sistema entrará em colapso. E a Amazônia deixará de ser o que é e se tornará uma grande savana tropical, que é a vegetação do Brasil central ou da Bolívia. “Estamos muito perto”, diz ele.
“Não podemos dizer: vamos desflorestar 50% da Amazônia e preservar os outros 50%. O que nos preocupa muito é que estamos vendo o declínio da Amazônia todos os dias. Há aumento na taxa de mortalidade das árvores que são típicas de um clima muito úmido e o crescimento de outras que são adaptadas à seca. Temos que trazer as taxas a zero até 2030”, diz ele.
Se a janela de tempo está ficando menor, isso exigirá pressão social e política muito maior de todos nós.
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