Cadeia produtiva ainda não tem regulamentação própria, mas o polo produtor, na Zona da Mata, tem se organizado juntamente com o Governo do Estado para mudar essa situação
“Hoje tudo o que eu
tenho é graças à piscicultura”. Este é o depoimento de Cristiano Cunha de
Paula, de 45 anos, da cidade de Patrocínio do Muriaé, na Zona da Mata mineira,
mas é uma frase recorrente ao ouvir os produtores da região. Poucos sabem, mas
Minas Gerais é responsável por 70% da produção nacional de peixes ornamentais,
mais especificamente a região de Muriaé, um conjunto de oito municípios compõem
o polo produtor desses animais.
Cerca de 400 famílias vivem da renda da produção de peixes ornamentais, o que
caracteriza agricultura familiar. Essa cadeia produtiva movimenta mais de R$ 10
milhões ao ano e é uma cultura que tem características peculiares, bem
diferentes das produções tradicionais da pecuária e agricultura, como o café e
o gado de corte.
Para se ter uma ideia, com 1.000 m² já é possível ter uma produção dos peixes,
um espaço ínfimo se comparado à produção de uma lavoura de café, por exemplo. O
manejo dessa cultura também requer menos esforço do que a manutenção de um
plantel de bovinos de leite, mas o maior atrativo para os produtores de peixes
ornamentais é o baixo investimento para um alto retorno financeiro.
A história de Márcia Gomes do Nascimento, de 29 anos, comprova o fato. Segundo
a produtora da zona rural de Patrocínio do Muriaé, “a criação de peixes
ornamentais, além de ter uma boa rentabilidade, é uma terapia. É muito
tranquilo”, conta.
A família de Márcia descobriu os peixes ornamentais quando se mudou de Divino,
onde a produção de café é destaque, para Patrocínio do Muriaé com seus pais, um
autônomo e uma bordadeira. Ao chegar ao novo destino, a família sentiu a
necessidade de produzir mais renda. Seguindo os passos de sua vizinha, a mãe de
Márcia decidiu iniciar sua própria produção.
A atividade começou de forma modesta, quando a menina tinha apenas nove anos.
Construíram um poço de bambu e, juntas, conseguiram produzir seus primeiros
peixes. Já na primeira produção, as vendas animaram a família, que com a renda,
compraram lona para construir mais poços para produzirem mais. Vendo o quão
promissor era a atividade, o pai de Márcia também se juntou a elas. Depois
disso, a produção só cresceu.
Seguindo o caminho tradicional, Márcia chegou a iniciar a graduação em
Engenharia de Produção, mas após o primeiro período, desistiu do curso sob
protestos de uma das professoras porque sentia saudade “da roça”. “Não me sinto
inferior às pessoas que estudam, pelo contrário, as parabenizo, mas me sinto
muito realizada criando peixes. Hoje, com oito anos de casada, tenho coisas que
meus pais, na minha idade, não tinham. Vivo confortavelmente e na roça. Minha
casa é boa, toda em cerâmica, tenho carro, uma moto e até uma bicicleta. Tenho
tudo isso por causa dos peixes”, celebra a produtora rural.
Em Patrocínio do Muriaé, Márcia conheceu Danilo Novaes de Paula, hoje com 31
anos, os dois se apaixonaram e estão casados há oito anos. Desde 2015 os dois
mantêm sua própria piscicultura numa propriedade cedida pelos pais do rapaz.
Quando iniciaram a produção, eles tinham apenas um barracão, mas aos poucos
foram construindo, o que se transformou em uma bela casa de três quartos, sala,
dois banheiros, um lavabo, garagem e cozinha integrada com área de lazer com
churrasqueira.
Já Danilo conta que o casal trabalha de domingo a domingo, porém, na parte da
manhã por causa do calor da estufa. No domingo, os dois se levantam às duas
horas da madrugada para embalar os peixes que seguirão para diversos estados
brasileiros e até para fora do Brasil. A folga vem apenas ao meio dia.
Danilo e Márcia trabalham cerca de seis horas por dia. Os números, o casal não
revela, mas o lucro é de cerca de 60%.
A produção de peixes ornamentais é tão vantajosa, que fez Marcelo da Silva
Gouveia Filho, de 29 anos, natural de Patrocínio do Muriaé, deixar o cargo
público que tinha como funcionário da Transpetro, empresa pública de transporte
e logística de combustíveis. Hoje, ele é formado em Administração de Empresas e
cursa uma pós-graduação, mas dedica seus esforços na criação de peixes
ornamentais.
Marcelo é produtor rural há cerca de um ano e conta que é possível iniciar a
produção com baixo investimento, mas optou por investir um pouco mais, com a
construção de estufas de alvenaria e lonas de melhor qualidade. Sua criação foi
estabelecida na propriedade de Íria e José de Paula, seus sogros, que também
criam peixes ornamentais. Os pais da esposa de Marcelo produzem peixes betta há
20 anos e criaram sua filha com a renda dessa criação.
“Quando pequena, minha filha sempre quis estudar, era um sonho que eu queria
que ela realizasse porque eu só tenho o quarto ano primário”, conta Íria Fátima
de Oliveira, de 54 anos. Hoje, a filha da produtora é formada e atua como
advogada na cidade de Patrocínio do Muriaé, a 10 quilômetros da propriedade da
mãe, onde o marido cria seus peixes.
A cidade de Patrocínio do Muriaé é conhecida como a capital nacional do peixe
betta, espécie conhecida por ser um peixe de briga, devido à sua agressividade
contra outros peixes. A criação dessa espécie é feita, atualmente, em garrafas
pet, que permitem que um animal não esteja em contato com o outro.
Apesar de a cidade ser conhecida por esse tipo de peixe, há criação de outras
espécies. A propriedade de Cristiano Cunha de Paula é um exemplo. Lá, Cristiano
produz, além do betta, espécies como o acará, guppy e colisa. O produtor vende
para todo o Brasil, com destaque para São Paulo e a região Sul do país.
Cristiano começou a atividade em 2001, quando trabalhava como profissional de
serviços gerais em Patrocínio do Muriaé. No início, ele era atravessador da produção
de um amigo e, percebendo a oportunidade, montou sua primeira estufa. Sua
produção era pequena e ele se dividia entre as duas atividades. Nos fins de
semana, ao invés de se divertir, Cristiano trabalhava com os peixes. Com o
crescimento da produção, ele precisou da ajuda dos seus pais. Em pouco tempo,
percebeu que poderia viver da piscicultura e pediu demissão do emprego. A
própria produção o permitiu melhorar sua estrutura. Hoje, ele tem estufas
altamente tecnificadas, com material de ponta, muito mais resistente.
O que se percebe na produção dos peixes ornamentais é a facilidade de manejo e
a presença da agricultura familiar. Ainda que muitas das propriedades tenham
uma grande estrutura, as pessoas de uma mesma família trabalham juntamente com
outros funcionários. Além disso, a atividade é um legado cultural na região,
que se tornou tão próspera graças a Paulo Braz, advogado que levou a novidade
para a região na década de 80.
Números que impressionam
O polo produtor de peixes ornamentais é compreendido pelos municípios de
Patrocínio do Muriaé, Vieiras, Eugenópolis, Miradouro, Barão do Monte Alto,
Muriaé, Rosário da Limeira e São Francisco do Glória. O último estudo,
desenvolvido pelo Instituto Federal Sudeste de Minas Gerais, campus Muriaé,
identificou 225 propriedades com cultivo de peixes ornamentais em sete
municípios pesquisados.
O estudo comprovou que o maior número de produtores de peixes ornamentais do
polo está concentrado na cidade de Patrocínio do Muriaé, seguido das cidades de
Vieiras e São Francisco do Glória. Além disso, 85% dos produtores entrevistados
têm de 30 a 49 anos e 68% da mão de obra empregada na produção da região é
composta pelos próprios familiares.
De acordo com as informações obtidas pela pesquisa, no ano de 2021, a região
produziu quase 8 milhões de exemplares de peixes ornamentais, gerando uma
receita bruta de mais de R$ 10 milhões. Essa produção é distribuída nos estados
de Minas Gerais, seguido dos estados da Bahia, Goiás, Mato Grosso, Rio de
Janeiro e São Paulo.
Segundo os dados dessa pesquisa, somente no ano de 2021, a rentabilidade mensal
foi de quase R$ 9 mil por hectare. O estudo também aponta que o potencial de
produção é ainda maior, pois a atividade ainda é carente de assistência técnica
especializada e faltam políticas públicas voltadas para o setor.
Percebendo a necessidade de apoio aos produtores e entendendo a importância da
atividade na região, o Governo de Minas tem se mobilizado para instituir uma
legislação própria para a cadeia produtiva dos peixes ornamentais que hoje tem
que seguir as normas da produção dos peixes de corte. A iniciativa, que partiu
da Secretaria de
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) e do Instituto Mineiro de Agropecuária
(IMA) em conjunto com a Empresa de Pesquisa
Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), vinculados à Seapa, teve início com
uma visita técnica à região no ano de 2023.
Como a produção é antiga na região, IMA e Epamig já desenvolvem um trabalho
conjunto: o IMA cuidando das questões de sanidade e a Epamig com pesquisas
diversas de manejo, reprodução e qualidade da água, em sua fazenda
experimental, na cidade de Leopoldina. “A parceria IMA e Epamig traz apoio ao
produtor e melhoramento da produção”, conta Alexmiliano de Oliveira,
pesquisador em piscicultura da Epamig.
Legislação própria
O grupo de municípios produtores de peixes ornamentais se juntou a órgãos do
Governo de Minas para definir uma legislação própria e estudar melhores
práticas para esta cultura. Maria José Firmo, coordenadora regional do IMA em
Viçosa, é uma representante do poder público no grupo e entusiasta da cadeia
produtiva dos peixes ornamentais.
“Atualmente todo produtor de peixe ornamental deve ser registrado no IMA e
seguir a legislação vigente, mas é urgente termos uma legislação própria para
este fim. Já temos uma comissão formada por nossos técnicos e especialistas da
área para formular uma portaria que regule esta produção tão importante para
nossa região”, diz a médica veterinária.
No início de março deste ano, a coordenadora do IMA organizou uma reunião com
mais de dez distribuidores de peixes ornamentais da região que, segundo eles
próprios, são responsáveis por 95% da distribuição da produção comercializada
no país. “Queremos preservar a produção e a história envolvida na atividade,
agregando valor à região, que tem famílias que dependem desse ramo”, revela
Maria José.
Ainda segundo a fiscal agropecuário, é importante que um órgão fiscalizador,
como o IMA, esteja próximo do produtor para entender melhor a produção e a
distribuição dos peixes e, assim, identificar pontos de risco sanitário e
preservar a atividade. Ela ainda conta que a cadeia produtiva recebe muito bem
a iniciativa do órgão, apesar de saber que há penalidades, caso a legislação
não seja cumprida.
Maria José ressalta a diferença entre o peixe de corte, aquele que é destinado
ao consumo, e os peixes ornamentais, que apenas embelezam os ambientes. “A nova
legislação vai proporcionar aos produtores um prazo para adequação de suas
atividades, antes da aplicação das questões legais”, garante a coordenadora.
Ainda em março deste ano, o IMA lançará consulta pública sobre a nova portaria,
uma oportunidade de a sociedade conhecer o que está sendo proposto pelo governo
e opinar a respeito. A expectativa é que a nova legislação seja publicada ainda
no primeiro semestre de 2024.
Foto: Igor Torres / IMA