Sigilo das negociações e proposta insuficiente da empresa são obstáculos para conciliação bilionária.
A falta de representação de diversas instituições, dos atingidos e a própria insuficiência da proposta da mineradora Vale S.A. são os principais obstáculos para o acordo negociado entre a empresa e o Governo do Estado, tendo em vista as ações para reparação por danos coletivos decorrentes do rompimento da Barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), em 25 de janeiro de 2019.
Esses obstáculos ficaram claros em críticas e ressalvas expostas durante audiência pública realizada sobre o tema nesta quarta-feira (11/11/20), pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais
(ALMG).
A tentativa de acordo se iniciou em audiência de conciliação realizada em 22 de outubro, na Justiça, envolvendo a Vale, o Executivo estadual, Ministério Público e Defensoria Pública Estaduais. A negociação se refere a duas ações judiciais, que somam uma reivindicação de quase R$ 55 bilhões por danos coletivos, incluindo R$ 26 bilhões por danos socioeconômicos e R$ 28 bilhões por danos morais e difusos.
Essa negociação está sob sigilo judicial e é criticada por não incluir representantes daqueles que foram diretamente atingidos pelo rompimento da barragem, assim como por excluir diversas instituições, tais como a própria ALMG.
Apesar de este sigilo impedir o conhecimento da contraproposta de conciliação da Vale, o representante do Ministério Público Estadual na audiência pública, promotor André Sperling, deixou claro que ela não é satisfatória, ao defender a suspensão do segredo de Justiça. “A proposta absurda, ridícula e irresponsável da Vale precisa vir à luz”, afirmou Sperling. Apesar disso, ele defendeu a tentativa de acordo como uma forma de agilizar as reparações.
O secretário adjunto de Estado de Planejamento e Gestão, Luís Otavio de Assis, informou que o Estado apresentou uma petição para suspender o sigilo ainda na terça-feira (10/11/20), concordando com a necessidade de se discutir abertamente algo que é de interesse público.
A suspensão do segredo de Justiça, no entanto, só poderá ocorrer se houver concordância da empresa Vale e de todas as partes do processo, segundo o juiz auxiliar da 3ª vice-presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), José Ricardo Veras. “O sigilo é para que se permita às partes que discutam livremente, sem produzir provas contra si mesmas. Nada que é debatido ali pode ser levado ao processo”, explicou Veras, complementando que a regra está prevista no Código de Processo Civil e na Lei de Mediação.
Na audiência pública desta quarta, no entanto, a empresa Vale decidiu não comparecer, enviando uma justificativa escrita de que “não foi concluído o processo de negociação”. A ausência foi duramente criticada pela deputada Beatriz Cerqueira (PT), que conduziu a reunião e que solicitou sua realização. “Queremos esclarecimentos antes da conclusão do acordo”, cobrou a deputada, destacando que a omissão da empresa mostra que ela não está disposta a colaborar, como falsamente afirmaria na própria justificativa de ausência.
Para o deputado federal Rogério Correia (PT-MG), o sigilo proposto é um verdadeiro absurdo, que seria uma forma de “passar o trator sobre os atingidos e o povo mineiro”. Segundo ele, o governador já sinalizou que aceita um acordo com a Vale por menos que os R$ 54 bilhões. Ele informou que, junto com Beatriz Cerqueira, entrou com representação no MP para resistir a isso.
Governo diz que acordo pode financiar renda mínima e outros 11 projetos
Durante sua apresentação na audiência pública, o secretário adjunto Luís de Assis ressaltou que a negociação envolve apenas direitos coletivos, mas não reparações ambientais e indenizações individuais, que serão tratadas à parte.
Inicialmente, segundo Assis, o entendimento não incluía também os auxílios emergenciais, que beneficiam cerca de 100 mil pessoas mas devem ser extintos este mês. O secretário afirmou, no entanto, que por ser essa uma prioridade para os atingidos, o governo passou a incluir em sua proposta de acordo um programa de renda mínima, que substituiria o auxílio.
Assis reafirmou que nenhum recurso obtido irá para o caixa único do Estado, mas para contas específicas, vinculadas a projetos de obras e serviços públicos que são propostos pelo governo, mas que serão definidos em conjunto com a população da região atingida.
Todo esse processo seria acompanhado por comissões temáticas e por uma auditoria externa. Além da proposta de renda mínima, o secretário adjunto apresentou uma lista de 11 projetos propostos pelo governo, que segundo ele têm o potencial de criar 198 mil empregos diretos e 101 mil indiretos.
Alguns exemplos destas propostas são investimentos em equipamentos públicos dos 22 municípios atingidos, tais como escolas, centros de atenção psicossocial, unidades de atenção primária em saúde e centros de assistência social; expansão da educação em tempo integral; universalização do saneamento básico nos 22 municípios atingidos; construção de um pelotão do Corpo de Bombeiros na região; crédito agrícola e para pequenas empresas; projetos de segurança hídrica para a Região Metropolitana de Belo Horizonte e a construção de um rodoanel metropolitano.
A deputada Beatriz Cerqueira criticou o formato apresentado por se constituir em uma alternativa ao processo legal de fiscalização do orçamento público, uma atribuição do Poder Legislativo e do Tribunal de Contas do Estado (TCE). “Estão propondo um novo modelo de fiscalização do Executivo?”, questionou.
A deputada afirmou que o Executivo apresenta a morosidade do Judiciário como uma justificativa para o acordo com a Vale, ao mesmo tempo que cria estruturas que enfraquecem o papel fiscalizador da ALMG e do TCE, em um processo que prejudicaria as instituições públicas. “A mensagem é que as instituições não funcionam”, criticou.
A deputada Andréia de Jesus (Psol) endossou a avaliação da colega e defendeu que o Estado deva submeter previamente à Assembleia todos os termos propostos para o acordo. Ela disse temer que obras e projetos sejam usados apenas para “limpar a imagem” da Vale e para favorecer a reeleição do governador Romeu Zema.
Legitimidade – O procurador regional dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, Helder Magno da Silva, informou que o MPF decidiu não participar do processo de negociação por não ter sido informado sobre as propostas e pela ausência de representação dos atingidos. Ele acrescentou que nada garante que a empresa cumprirá o acordo firmado. “A Vale assina acordos e busca mecanismos para descumpri-los”.
Ele também disse ter dúvidas sobre a legitimidade da conciliação proposta, conduzida diretamente pela Presidência do TJMG. Conforme explicou, o sistema judiciário brasileiro não tem um instrumento de avocação de responsabilidade e, por isso, talvez o acordo possa ser considerado inconstitucional por suprimir instâncias na tramitação.
Vítimas se opõem a acordo firmado sem sua participação
Diversos moradores das regiões atingidas foram ouvidos durante a audiência, assim como coordenadores de assessorias técnicas independentes, estruturas criadas por decisão judicial para auxiliar os atingidos a reivindicar suas reparações.
Morador do Parque da Cachoeira, uma das localidades inundadas pela lama de rejeitos, Silas Teixeira disse que apenas um sexto dos 1,2 mil moradores estão sendo indenizados pela Vale. “A lama está a 200 metros da minha casa. Estamos tomando antidepressivo e vivendo de cesta básica”, afirmou.
A coordenadora da Assessoria Técnica Independente Aedas, Ísis Táboas, disse que o acordo em negociação, sem a participação dos atingidos, desrespeita o princípio da centralidade do sofrimento da vítima. “São dezenas de bilhões de reais em um acordo sigiloso”, criticou ela.
Fernanda Perdigão, representante de Piedade de Paraopeba, disse considerar a tentativa de um acordo como um “leilão dos direitos dos atingidos”. Ela afirmou que as vítimas das áreas afetadas pelo rompimento desejam o cancelamento da próxima audiência de conciliação entre o Estado e a Vale, que está prevista para 17 de novembro.